Tudo se resume à nomeação de um governo que se mantém igual ao anterior, com aparente desprezo pela voz do povo e pelos quadros do MPLA. João Lourenço demonstra, por um lado, sem equívocos, que não é reformista e não tentará sê-lo. Por outro, revela que não interpretou adequadamente o cartão vermelho que lhe foi dado pelos seus militantes e pela classe média em Luanda, o centro do poder. Com a recondução dos mesmos conselheiros no seu gabinete, dos mesmos ministros e dos mesmos governadores perdedores nas suas províncias, dá a ideia de que o presidente desistiu do país e dos angolanos. Como diz uma estilista, “isso é azar!”
No seu primeiro mandato, os feitos no domínio das infra-estruturas (sobretudo hospitais) não foram suficientes para galvanizar o eleitorado, pelo que o segundo mandato de Lourenço teria de ser de humanização do poder e de retribuição do poder de compra aos cidadãos, aliviando as políticas concentracionárias da economia de saque, de austeridade e de carga fiscal excessiva (IRT, IVA, etc.).
Join our WhatsApp ChannelDepois das eleições de 24 de Agosto passado, a sociedade – em particular os sectores militares e policiais, os magistrados, os funcionários públicos e o tecido empresarial, desesperados com o agravamento das já de si péssimas condições socioeconómicas – esperavam que o presidente alterasse a constituição do governo de modo a convocar alguma esperança nos seus actos futuros. Debalde.
A escolha do elenco do governo que acaba de ser nomeado parece ter-se baseado na “teoria do mais próximo”, revelando total ausência de bom senso político e de vontade de mudança. A escolha, segundo essa teoria, assenta nos laços de proximidade com o decisor máximo. Mais parece que Lourenço decidiu vingar-se do eleitorado, nomeadamente ao manter no governo a equipa económica liderada por Manuel Nunes Júnior, responsável por desarticular as bases da economia: o mercado, a livre iniciativa das famílias e dos empresários. De facto, o calcanhar de Aquiles do presidente é sem dúvida a economia.
A maioria dos eleitores angolanos (54%) exprimiu, de forma contundente, a sua indiferença política ao não votar, enquanto cerca de um terço dos eleitores apostou na alternância do poder, na mais renhida das eleições gerais desde há 30 anos.
Com este mandato, o MPLA atingirá meio século de governação ininterrupta e com um balanço de profunda degradação do bem comum. Como diriam os activistas, serão 50+2 anos de sofrimento para o povo.
No entanto, há uma nota positiva merecedora de destaque. Estas últimas eleições marcam o fim da hegemonia política do MPLA e do seu domínio absoluto sobre a vida dos angolanos. Quem mais fez pelo desmantelamento dessa hegemonia foi João Lourenço, com as suas estratégias e actos de intuição política.
Logo no início do seu mandato, afirmámos que o presidente João Lourenço, para bem governar, tinha de escolher como foco principal da sua acção o povo ou o MPLA.
Na tomada de posse do seu primeiro mandato, em 2017, o presidente afirmou: “Assumo desde já o compromisso de executar as minhas promessas eleitorais, com políticas públicas que vão ao encontro dos anseios dos cidadãos e com uma governação inclusiva, que apele à participação de todos os angolanos (…).” Lourenço, porém, fez o oposto do que disse e prometeu.
O presidente não escolheu nem o povo nem o MPLA. Optou por seguir a sua intuição, em vez de governar de forma transparente, com base no seu próprio slogan: “Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”. Concentrou-se na estruturação do seu poder pessoal, criando um círculo de confiança do poder sem talentos, baseado em relações de amizade e oportunidades individuais.
Estes cinco anos demonstraram o que a teimosia pessoal de um líder, que insiste em governar de improviso e sem uma visão holística para o país, pode causar a todo um povo, a toda uma nação, independentemente de ter erguido hospitais, escolas e outras obras de betão armado. As obras colectivas foram confundidas com ganhos individuais.
O cidadão, por seu lado, quer saber, antes de mais, dos seus rendimentos e dos meios para sustentar a sua família. Quando este aspecto essencial não está garantido, nada mais funciona.
O primeiro mandato centrou-se na austeridade, provando uma depressão económica. Agora, o governo tem de devolver o poder de compra às famílias. Porém, tal não será possível se mantivermos os mesmos “engenheiros” e “executores” da depressão económica no poder. Nas finanças e na economia, era imprescindível encontrar novos protagonistas, capazes de aliviar as medidas que prejudicam o poder de compra, por exemplo reduzindo o IRT e o IVA para taxas mínimas.
É necessário haver uma visão, um pensamento estratégico, um fio condutor para mudar um país, que continua alicerçado numa concepção centralista e autoritária do poder.
Com a explosão demográfica, Angola tem quatro principais desafios de momento: o desemprego, a pobreza, a fome e a democratização. Em relação a qualquer uma destas áreas, a população pouco ou nada espera deste governo repetente de João Lourenço.
Contudo, é preciso reconhecer a sua legitimidade constitucional e internacional e apelar publicamente ao presidente para que defina uma estratégia abrangente que se concentre na resolução imediata e sustentável, a médio e longo prazo, desses quatro problemas.
O novo governo de Lourenço tem de aprender a ouvir o povo, as organizações sindicais e todos aqueles com boas ideias para o bem do país, acolhendo-os para que, juntos, empreendam uma caminhada de transformação de Angola.
Com efeito, para que as mudanças em Angola sejam reais, irreversíveis e destinadas ao bem comum, é necessário que o presidente priorize a luta contra a arrogância política, incluindo a sua já lendária teimosia, assim como declare a incompetência como inimiga do governo. Como dizia o saudoso Samora Machel, “o Estado não pode ser o asilo dos inúteis e dos incompetentes. O Estado não pode ser o refúgio dos indisciplinados e dos corruptos”.
Só com esses primeiros passos se poderá incutir a capacidade de ouvir, bem como instituir valores morais que orientem a conduta dos dirigentes e dos funcionários públicos. Só assim será possível que os dirigentes que causaram estragos e danos irreparáveis ao país apresentem as suas demissões, num acto de humildade e de respeito pelo povo. Só assim será possível reformar efectivamente as instituições públicas, sobretudo as da justiça, para gerar confiança entre os cidadãos e o Estado.
Ora, com a nomeação de Marcy Lopes para ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, o presidente emite um sinal claro de não está interessado em reformar a justiça, sendo previsível que haja uma regressão relativamente aos tímidos progressos que se tinham verificado até aqui.
João Lourenço tem de ultrapassar com urgência três obstáculos: a arrogância política, a incompetência e a instrumentalização política da justiça e partidária da comunicação social. Mais importante ainda, os angolanos têm de compreender, cada um de acordo com as suas faculdades, que não podem ficar à espera da vontade do presidente, de um só homem, para fazer avançar o país que é de todos nós. Essa é uma missão prioritária de todos os cidadãos.
Arrogância política
É importante realçar, antes de mais, as boas intenções que têm movido o presidente na abertura da sociedade. Essas boas intenções, porém, conflituam e são atropeladas pelo seu modelo de governo, assente na arrogância política.
A arrogância política, no caso de Angola, pode ser definida como o exercício autocrático do poder, de imposição da vontade pessoal e de um pequeno grupo circundante, sem uma visão holística para o bem do país e dos angolanos. É o exercício do poder sem ouvir os clamores da sociedade e desprezando os seus contributos. É o exercício do poder sem bons conselhos, sem recurso aos talentos nas diferentes áreas do saber para tornar as instituições do Estado funcionais.
Por exemplo, o presidente João Lourenço começou muito bem o seu primeiro mandato, em 2017, com discursos inspiradores contra a corrupção, a praga que tem devastado o país. Todavia, não moralizou o seu próprio governo. Não engendrou nenhuma política pública consequente de auscultação, envolvimento e moralização da sociedade contra o fenómeno da corrupção. Acabou por permitir a captura do sistema judicial, a quem confiou a luta contra a corrupção, quando deveria ter sido o promotor da sua reforma, eficácia e independência. Com o novo governo agora nomeado, reforça a captura do Estado.
A situação económica e social da maioria dos cidadãos deteriorou-se, e o desemprego e a fome contribuíram para uma desestruturação maior das famílias angolanas. Conforme os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), cerca de 80% da população angolana em idade activa sobrevive do mercado informal. De acordo com o INE, mais de metade dos jovens em idade activa é desempregada (56,7%). Angola é, assim, um país inviável para a juventude, que constitui o grosso do eleitorado.
O presidente limitou-se a seguir um conjunto de políticas macroeconómicas ortodoxas importantes, mas sem correspondência com a realidade da maioria dos angolanos. A equipa económica dirigida por Manuel Nunes Júnior, ora reconduzida, nunca se deu ao trabalho de comunicar com os cidadãos sobre o impacto das suas medidas nem sobre as soluções para reverter a gravidade da situação. E sobretudo, nunca tentou fazer a ponte entre a política económica e o bem-estar do povo, esperando por um milagre qualquer que nunca aconteceu. O governo ignorou e continua a desprezar o sofrimento do povo.
Durante a campanha eleitoral, em vez de discursos, o presidente apresentou cansativos relatórios sobre os seus feitos de betão armado. Sobrepôs-se, desse modo, à fome, ao desemprego, à frustração social generalizada e à falta de perspectivas de uma vida melhor para a maioria dos cidadãos.
Não se desmerece a obra feita, mas é preciso mais e melhor. E esse mais e melhor obriga a apresentar uma visão global para o país e uma governação abrangente e participativa. O tempo em que se governava para o petróleo e se esquecia o povo acabou.
Esta teimosia incompreensível tem acarretado enorme impopularidade para João Lourenço e colocado o país em risco de desgoverno. A teimosia presidencial deve ser transformada em determinação na concretização de políticas, programas e planos, em vez de um imobilismo surdo e cego.
Incompetência
Como nota um distinto membro do MPLA, actualmente, e contrariando a percepção pública, “o pior problema do governo não é a corrupção, mas a incompetência”.
A incompetência pode ser pior do que a corrupção. Não se contabiliza directamente, mas tem um efeito mais devastador. Impede o normal funcionamento das instituições do Estado e destrói a confiança dos cidadãos.
Vejamos o caso de um ministro nas graças do presidente: Ricardo Veiga d’Abreu, com a pasta dos Transportes. O ministro não consegue sequer pôr a funcionar, com regularidade, o comboio entre Luanda e Malanje. Praticamente destruiu a companhia aérea nacional, a TAAG. Não faz nada pela cabotagem e pelos transportes públicos. Há indícios de actos nefários na tentativa de aquisição do edifício de um amigo (ver aqui e aqui), e mesmo assim é uma estrela do governo, no qual se mantém radiante.
Em resumo, a combinação da arrogância política e da incompetência geram uma gestão dolosa do país. Logo, a incompetência age como agente facilitador da corrupção, dada a incapacidade de controlar eficazmente as despesas públicas e de garantir o normal funcionamento das instituições do Estado. Daí que, muitas vezes, as nomeações de indivíduos com demonstrada incompetência sirvam bem os propósitos da corrupção e da captura do Estado.
A instrumentalização política da justiça
e a partidarização da comunicação social
Justiça
O tema actual das eleições é a maior prova de que boa parte dos políticos e dos cidadãos apenas se apercebe da verdadeira importância do sistema judicial – para a realização da justiça, dos direitos humanos e da democracia – quando entra em conflito com a lei ou vê os seus direitos violados. Os partidos políticos só põem em causa o sistema judicial no quadro das suas contendas eleitorais. De resto, não lutam pela melhoria desse mesmo sistema, para que haja justiça. Numa sociedade democrática, a independência – associada à eficácia – do sistema judicial constitui o principal pilar da confiança entre os cidadãos e o Estado. Sem justiça não há democracia.
A justiça tem de inspirar confiança e erguer-se como um dos sustentáculos do Estado de Direito. Não deve continuar a ser um instrumento nas mãos do poder político.
Com a nova composição, agora equilibrada, do parlamento, espera-se que este assuma um pendor reformista, obrigando a que as grandes mudanças e nomeações para a justiça sejam feitas por acordo entre os dois maiores partidos. Ainda que pequeno, este pode ser um passo determinante para a independência do sistema judicial.
Comunicação social
Paradoxalmente, o presidente tanto facilitou a promoção da liberdade de expressão – ao acabar com a cultura do medo – como tem consentido o retorno estalinista da comunicação social do Estado. Esta é marcada pela ausência de pluralidade e de liberdade de imprensa. O trabalho da Televisão Pública de Angola (TPA), sobretudo, tem irritado e alienado cada vez mais os cidadãos. Em vez de informar e formar a opinião pública, tem-se mostrado adversária do senso comum, gerando hostilidade. Hoje, as redes sociais são a maior fonte de informação e desinformação dos cidadãos.
Para começar, é preciso desmantelar as estruturas caducas de interferência partidária e securitária nos órgãos de informação estatal. O presidente deve promover, como o “dono da bola”, concursos públicos para a direcção-geral destes órgãos e das respectivas redacções.
É fundamental introduzir um novo modelo de governação dos órgãos de comunicação social colocando na sua base uma entidade plural e aberta composta por membros das várias agremiações político-sociais, como universidades, igrejas, sindicatos, organizações patronais, etc., de onde emanem as nomeações das direcções do Jornal de Angola, da TPA, da Angop, da Rádio Nacional de Angola, bem como as linhas gerais de orientação.
Os órgãos privados colocados sob a alçada do Estado no âmbito da recuperação de activos, como a TV Zimbo, devem seguir o mesmo procedimento.
Simultaneamente, o departamento do Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação que agrega a Comunicação Social deve ser extinto.
Só com liberdade de expressão e de imprensa será possível criar uma cultura de boa fiscalização dos actos do governo e de regulação da conduta da própria sociedade, incluindo a avaliação das iniciativas da oposição.
Conclusão
Sem um grau aceitável de confiança entre governados e governantes, o país continuará dividido entre os beneficiários, os excluídos do exercício do poder e os agitadores que apelam à revolta. As relações entre o cidadão, o governo e o Estado devem ser de confiança mútua na persecução do bem comum.
As reformas são imprescindíveis para que se mude o rumo do país, se coloque o governo ao serviço inequívoco do povo e do Estado e se garanta a alternância do poder.
Lourenço está no início do segundo mandato e ainda pode voltar a merecer a confiança do seu povo. Tem de cumprir apenas o que prometeu no seu discurso de tomada de posse de 2017 – “A governação [será] inclusiva e com a participação de todos os angolanos” – e no de 2022: “[Sou presidente] de todos os angolanos”.
É preciso lembrar aos cidadãos as sábias palavras de um distinto advogado estado-unidense, Bryan Stevenson, num momento em que muitos cidadãos deixaram de ter qualquer esperança nos actos do presidente do seu próprio país. “A falta de esperança é inimiga da justiça. A esperança permite-nos avançar mesmo quando a verdade é distorcida pelos detentores do poder. Permite-nos levantar quando nos ordenam para sentar e falar quando somos silenciados.” Como argumenta Stevenson, “o oposto da pobreza não é a riqueza, mas a justiça”. Por isso, a luta pela justiça deve ser a mais importante de todas para os cidadãos que desejam um país melhor.
Source : African Media Agency (AMA)
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